“A verdade sobre a demolição do Caiçara”

Nesta matéria, uma lição sobre preservação, memória e identidade de um bairro no Recife.”A demolição (ainda que parcial) do Edifício Caiçara (…) sensibilizou grande parte dos recifenses, principalmente porque o imóvel representa um remanescente simbólico de resistência frente à política de (des)planejamento urbano do município e desprestígio à preservação do patrimônio histórico, bem assim à especulação imobiliária selvagem que tomou conta do bairro e de todo o Recife (…) Não sabemos ao certo a cidade que queremos. Todos temos diferentes aspirações. Mas decerto devemos saber a cidade que não queremos: uma cidade fria, sem identidade, sem conexão com o passado e suas origens. Porque povo sem memória é povo sem história. E povo sem história é povo sem alma”

Originalmente publicado por Belize Câmara para o Blog Acerto de Contas

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“A demolição (ainda que parcial) do Edf. Caiçara, situado na Av. Boa Viagem, sensibilizou grande parte dos recifenses, principalmente porque o imóvel representa um remanescente simbólico de resistência frente à política de (des)planejamento urbano do município e desprestígio à preservação do patrimônio histórico, bem assim à especulação imobiliária selvagem que tomou conta do bairro e de todo o Recife. Para a completa compreensão do episódio, alguns esclarecimentos iniciais são imprescindíveis.

Em primeiro lugar, no Brasil e no mundo inteiro, a propriedade não é um direito absoluto e, diferentemente do que muitos pensam e propagam por aí, o proprietário de um imóvel não pode fazer dele o que bem lhe aprouver, nem destruí-lo, se sua preservação interessa ao patrimônio histórico-cultural de uma determinada coletividade.

Em segundo lugar, a proteção do patrimônio histórico-cultural de uma cidade não significa necessariamente que ela tenha que permanecer intocável e que nada possa ser demolido para dar lugar ao novo. Significa, isto sim, a necessidade de serem preservados certos bens que estão ligados à sua memória afetiva, por retratarem a essência de uma forma de viver da comunidade vigorante em determinada época. Por isso não é necessário que o bem seja belo e suntuoso e nem que seja `antigo´, pois todas as épocas possuem sua relevância e diferencial. Por outro lado, quanto maior a escassez do bem, principalmente no contexto em que ele está inserido, maior a sua relevância.

Em terceiro lugar, a Constituição Federal estabelece que o tombamento é apenas UMA das formas de proteção do patrimônio cultural brasileiro, existindo OUTRAS formas de acautelamento e preservação (art. 216, § 1º). Daí porque a União, os Estados, os Municípios, o Ministério Público e a própria sociedade devem agir para prevenir e recuperar os danos ao patrimônio histórico-cultural INDEPENDENTEMENTE de serem os bens tombados ou não.

Em quarto lugar, só existe `tombamento´ (com essa expressão e efeitos legais específicos) a nível estadual (feito pela Fundarpe/PE) e federal (feito pelo IPHAN). Não existe tombamento na esfera municipal.

Esclarecidas essas premissas, vamos aos fatos, que são de interesse público e estão contidos em processo não sigiloso. No dia 04/05/12, quando ainda no exercício da Promotoria do Meio Ambiente de Recife, sem receber qualquer expediente escrito e formal, mas por tomar conhecimento de danos e ameaça de demolição ao Edifício Caiçara, por meio do Facebook, notadamente através da página `Salve o Caiçara´, decidi instaurar procedimento de investigação para apurar os fatos.

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Passados dez dias, tomei conhecimento de duas informações: a existência de alvará de demolição do imóvel concedido em 2011 pela Prefeitura do Recife à empresa Rio Ave e a abertura de processo de tombamento pela Fundarpe, por provocação da sociedade civil. Em razão disso, achei por bem expedir a Recomendação nº. 08/12, dirigida à construtora, à própria Fundarpe e ao Município do Recife, reforçando a cada um deles, em seus respectivos âmbitos de atribuição, suas obrigações de proteção quanto ao imóvel cujo tombamento se encontrava `pendente´, destacando o dever de não demoli-lo.

Pois bem. Enquanto a Fundarpe analisava o tombamento, a empresa Rio Ave manifestou-se no processo e acatou a Recomendação nº. 08/012 para não demolir o imóvel. Uma vistoria da Fundarpe/PE, a pedido do próprio MPPE, até constatou providências destinadas à sua conservação.

Mas na sequência meu receio se concretizou: a Fundarpe/PE, em tempo recorde – num processo que em geral dura anos – indeferiu (rejeitou) o tombamento do Caiçara.

Embora eu discordasse da Fundarpe/PE, precisava de elementos técnicos para ir de encontro ao posicionamento do órgão. A dificuldade é que, nessa tarefa, o Promotor de Justiça não é arquiteto, urbanista, historiador, arqueólogo. Ele se vale do subsídio desses e de outros profissionais, geralmente oriundos de órgãos públicos, para operar o Direito em favor da sociedade.

Já suspeitando que a Fundarpe/PE pudesse rejeitar o tombamento do Caiçara e imaginando um plano `B´ para a situação, requisitei ao Município do Recife, através da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC), a realização de estudo sobre o valor histórico-cultural do imóvel.

Como leitor atento, você pode estar imaginando: `mas não existe tombamento municipal´!! Ora, mas também como dito acima, o tombamento não é a única forma de proteção dos bens históricos!! E aí estava a luz no fim do túnel: a transformação do Caiçara, pelo Município, em `Imóvel Especial de Preservação´ (IEP), o que não é propriamente tombamento, mas tem um efeito parecido, qual seja, a preservação do imóvel.

Mas o que é um IEP? A Lei Municipal nº. 16.284/97 define os IEPs como sendo aqueles que constituem exemplares isolados de arquitetura significativa para o patrimônio histórico, artístico e/ou cultural da cidade do Recife. A lei traz um anexo com os imóveis assim considerados e, como alguns exemplos, podemos citar: o Conservatório Pernambucano de Música, o Hotel Central na Av. Manoel Borba, o Hospital da Polícia Militar, o Hospital Geral do Recife, os prédios da URB e da EMLURB, vários imóveis na Praça de Casa Forte, o Buffet Arcádia, o Clube Internacional do Recife, o Clube Náutico Capibaribe, o `Castelinho´, dentre outros. Entre eles, pasmem: estão os Edifícios Califórnia e Acaiaca!! Lamentavelmente, ficou de fora da listagem o Edifício Caiçara…

Pois bem. E o que disse o parecer da DPPC (órgão do município), requisitado pelo Ministério Público?? Feliz e, ao nosso ver, acertadamente, concluiu que o Caiçara possuía valor histórico-cultural, reconhecendo a sua importância para a memória da cidade e a necessidade de sua preservação!! Não tenho acesso a esse parecer porque não estou mais na Promotoria do Meio Ambiente do Recife, mas ele está lá no inquérito civil sobre o assunto. Ao vê-lo, ingenuamente pensei: `o Caiçara está salvo, mas o MPPE vai dar um empurrãozinho´.

Foi daí que, em 24/10/12, expedi a Recomendação nº. 19/2012, no sentido de que o Município do Recife transformasse o Edf. Caiçara em IEP, usando como argumentos as razões apresentadas pelo seu próprio órgão de proteção do patrimônio cultural (DPPC), isto é, que o imóvel: a) seguiu uma tendência construtiva que se manifestava em Boa Viagem, com suas casas de veraneio e ocupação territorial esparsa; b) foi construído em 1942, constituindo um exemplar raro de edificação neocolonial com referências hispânicas, remetendo, também e principalmente, à memória afetiva do bairro; c) é um dos poucos remanescentes da origem do bairro de Boa Viagem, ressaltando-se que, com o crescimento da área, as antigas casas e residências e edifícios menores foram dando lugar a construções cada vez mais verticalizadas, que foram transformando a paisagem local e mudando a feição do bairro, de origem balneária; d) evidencia a evolução histórica do Bairro de Boa Viagem, revelando um modus vivendi do início da década de 40, quando o bairro ainda mantinha uma feição bastante diferenciada, com gabaritos baixos e densidade territorial e populacional bastante reduzidas, memória esta que não deve ser apagada; e) tem recebido apelos e manifestações da população em geral favoráveis à sua preservação, revelando uma relação de identidade e apego, o que deve ser considerado, tendo em vista que a sociedade é a grande responsável pela construção da identidade do lugar; f) atende aos requisitos de classificação para Imóvel Especial de Preservação (IEP), nos termos da Lei Municipal nº. 16.284/97, em face de suas comprovadas características e de sua importância para a história e cultura locais.

Expirado o prazo da Recomendação, o Município não respondeu se acatava ou não os seus termos. À época em que estava reiterando os ofícios em busca da resposta por parte do Município, fui dispensada das atribuições junto à Promotoria do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (01/03/2013), não tendo obtido mais quaisquer notícias acerca da investigação, a não ser agora com o ataque desferido ao imóvel.

O mais triste é que, exatamente no momento do meu afastamento, estava com uma ação judicial praticamente pronta (disponível a quem se interessar), destinada a compelir o Município a transformar o Clube Líbano e o Edf. Caiçara em Imóveis Especiais de Preservação (IEP), evitando, assim, suas demolições e procurando agir de forma preventiva, sempre preferível a uma atuação meramente repressiva (tardia e intempestiva), que muitas vezes não traz o bem de volta nem o recompõe ao seu estado original. Lamentavelmente, por motivos alheios à minha vontade, não foi possível concluir a meta planejada.

Dito tudo isso, gostaria de registrar que, embora não tenha restado dúvidas de que a Construtora Rio Ave agiu ilegalmente ao demolir o imóvel sem aguardar a conclusão definitiva do processo de tombamento estadual, o fato é que o Poder Público Municipal contribuiu decisivamente para a causação do dano ao patrimônio histórico-cultural, à medida em que se omitiu na adoção das providências necessárias e urgentes para a transformação do Caiçara em IEP.

Ah, mas existem os trâmites burocráticos… Estes são sempre uma ótima desculpa. Ora, o parecer do próprio órgão de proteção cultural do Município reconhecendo o valor histórico do bem e dizendo que ele preenche os requisitos para ser IEP, bem como a subsequente Recomendação nº. 19/12 do MPPE, visando a transformá-lo em IEP, remontam há quase um ano da demolição. À vista deles, é óbvio que o Município do Recife teve tempo hábil de transformar o imóvel em IEP e, mais que isso, deveria ter imediatamente determinado a `cassação´ do alvará de demolição concedido à Rio Ave (e não apenas a sua suspensão como fizeram). Assinale a alternativa correta: incompetência, lapso, falta de vontade política, má fé. Em qualquer das três hipóteses, configurada está a responsabilidade do Município.

Ao imputar a ilegalidade da demolição apenas à Construtora Rio Ave, o Município do Recife quer fazer crer que não possui responsabilidade pelo evento, quando, a depender dele, a demolição seria apenas uma questão de tempo e o prejuízo à memória da cidade teria se efetivado de qualquer maneira, pois não cassou o alvará de demolição que se encontrava como arma nas mãos da construtora. Em outras palavras, o argumento meramente burocrático – de que a empresa demoliu sem esperar a conclusão do processo de tombamento – não esconde a inércia do Município na transformação do imóvel em IEP diante de parecer conclusivo nesse sentido, oriundo de órgão integrante de sua própria estrutura. Por isso, em qualquer ação que vise à responsabilidade pelos danos causados, o Município deverá figurar necessariamente no pólo passivo como parte demandada.

Já em relação à Fundarpe/PE, podemos até discordar e criticar o seu posicionamento, bem assim constatar que esperávamos mais do órgão e que ele frustrou nossas expectativas ao não tombar o Caiçara, mas o fato é que, diferentemente do Município, o órgão estadual se pronunciou em desfavor do tombamento e concluiu que não havia interesse do Estado na preservação do bem. Mas o que pouca gente sabe é que a mesma Fundarpe/PE disse que deveria haver preservação a nível municipal. Assim, salvo comprovada insubsistência técnica de seu parecer ou má fé dos seus representantes, a única responsabilidade da Fundarpe/PE poderia recair, em tese, na deficiência de vigilância do bem enquanto o processo não foi definitivamente concluído.

A essa altura do campeonato, uma frase ecoa: `queremos o Caiçara de volta´. As únicas saídas para isso no momento são: o Estado voltar atrás e tombar o imóvel, o Município fazer a tarefa de casa atrasada e transformá-lo em IEP, o MPPE ou a sociedade promoverem ação judicial para obter o tombamento ou a transformação em IEP de maneira compulsória. Tudo isso, claro, sem prejuízo da reconstrução da parte destruída e recuperação dos danos já causados.

Todo esse episódio, porém, deve servir de alerta para algo maior e mais grave: a acelerada perda de elementos de identidade e memória do Recife, cujo verdadeiro urbanista vem sendo o capital. De fato, vários imóveis da cidade, embora não antigos e suntuosos, dão a noção de como era o modo de viver da cidade em várias épocas e, pela singularidade de suas arquiteturas e seus estilos, merecem ser preservados, seja por tombamento ou por outras formas de proteção, a fim de que uma parcela importante da história não seja apagada.

Foi com essa ideia que, quando em exercício na Promotoria do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico do Recife, instauramos procedimento destinado a aumentar, junto ao Município, a listagem dos IEPs (Imóveis Especiais de Preservação). Depois da minha dispensa, porém, não tenho conhecimento a quantas anda o procedimento.

A queda do Caiçara é um sinal para os que querem enxergar. Um sinal para que os recifenses valorizem o seu patrimônio enquanto ele ainda está de pé, e não apenas quando transformado em ruínas. Um sinal para a tomada de atitudes concretas.

A pressão social, juntamente com a atuação tempestiva de órgãos como o Ministério Público (mesmo com apenas dois promotores responsáveis pelo assunto em todo o Recife), são armas poderosas para combater a negligência na tutela do patrimônio ambiental, histórico e cultural por parte do Poder Público, cuja rotina é sucumbir ao poder das construtoras, grande responsável pelo financiamento das campanhas eleitorais.

Não sabemos ao certo a cidade que queremos. Todos temos diferentes aspirações. Mas decerto devemos saber a cidade que NÃO queremos: uma cidade fria, sem identidade, sem conexão com o passado e suas origens. Porque povo sem memória é povo sem história. E povo sem história é povo sem alma.”

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