A Bíblia e os ambulantes de trens declarados patrimônio cultural imaterial do Estado do Rio: o que significa?

Neste mês de janeiro, em meio às desditas da pandemia da Covid-19 e da recuperação fiscal do estado, passou a viger duas leis insólitas: as leis 9.170 e 9177, ambas feitas para declarar, respectivamente, os trabalhadores ambulantes de trens e a “Bíblia sagrada” como patrimônios culturais imateriais do Estado do Rio.

 

O que será que pretenderam os deputados estaduais com estas leis?

A primeira resposta é óbvia: ter mais uma proposição legislativa em seus currículos parlamentares. E a pressão para ter muitas propostas legislativas durante o mandato, independentemente da qualidade ou do inócuo das mesmas, não é somente culpa dos parlamentares.

Existe sim uma pressão rasteira da mídia que, ao comentar ou classificar a atividade de um parlamentar, busca como referência a quantidade de propostas legislativas que ele ou ela tem ou teve em seu mandato; isso independentemente da qualidade do que foi proposto. Como consequência, a quantidade de propostas legislativas inócuas ou inconstitucionais é enorme, e constitui um desserviço e uma perda incalculável de tempo da tarefa legislativa, e um acúmulo incalculável de ações no Judiciário. Um custo público para ambos os poderes (legistativo e judiciário) que poderia e deveria ser banido, já que vivemos tempos de economia e racionalização dos serviços públicos pagos pelo contribuinte.

O segundo interesse é um agrado inócuo a determinados grupos de eleitores. Os parlamentares proponentes sabem (ou não) que estes grupos de eleitores ignoram que o efeito prático daquela lei é provavelmente nenhum, especialmente quando declaram algo (a Bíblia sagrada ou o biscoito Globo), ou alguma atividade ou pessoa (trabalhadores ambulantes nos trens) como “patrimônio imaterial”. Aliás, como um trabalhador ambulante poderia ser patrimônio imaterial?

De qualquer forma, a cada lei declarando patrimônio cultural imaterial há um frisson criado pela expectativa trazida neste “agrado”. O que irá acontecer agora que a Bíblia sagrada foi declarada como patrimônio imaterial fluminense? Se alguém tiver uma bíblia antiga e rasgada não poderá mais jogá-la no lixo? Ah, pode sim, pois o patrimônio é imaterial, e não a coisa, o livro que alguém tem em casa, no templo, ou na igreja.

E quanto aos trabalhadores ambulantes? A concessionária não poderá mais proibir o comércio de ambulantes nos trens? Está liberado para quem quiser vender qualquer coisa, ou só são patrimônio os trabalhadores que já estiverem em atividade? Ninguém mais entra ou saí? É aplicável somente para ambulantes que vendem determinados produtos como balinhas, cosméticos, acessórios de eletrônicos? São os trabalhadores que são patrimônio, mesmo que não exerçam ou possam não exercer mais a atividade?

Bem, não importam as perguntas sobre os efeitos da lei, pois nem mesmo a Administração saberá se estará obrigada a ter qualquer ação sobre o que foi declarado patrimônio imaterial por ato da legislativo. Isto porque o próprio ato legislativo não disse quais os efeitos que pretendia atribuir à sua declaração de patrimônio imaterial. Por isso, ambas as leis, como tantas anteriores, são leis meramente declarativas, pois não dizem nem quais são os seus efeitos, nem qual é a proteção pretendida. Neste sentido são inócuas.

Atos legislativos não podem atribuir serviços obrigatórios a outro poder, no caso, ao Executivo. Isto porque serviços administrativos acarretam aumento da despesa para desempenho daquela atividade. Então, o único efeito dessas leis declaratórias é vê-las como uma homenagem que o Parlamento faz a algum grupo de pessoas.  Mas, o excesso deste tipo de homenagem faz o assunto virar ordinário e vulgar.

A “homenagem” resume-se a um papel publicado em um diário oficial, e que irá somar-se ao número de projetos de algum parlamentar, necessitado de se legitimar com projetos de lei, para atender, quem sabe, a alguma pressão da mídia. Mas, vale a pena?

Em tempo: sobre o assunto há um livro muito interessante da Mila B. L da Costa. O Poder Legislativo no Desenho Institucional da Política de Preservação do Patrimônio Cultural no Brasil, que trata das inúmeras propostas legislativas de declaração de patrimônio imaterial feitas especialmente no âmbito do parlamento do Estado de Minas Gerais.

Leia mais:

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Profilaxia no número de proposições legislativas, já !

2 Resultados

  1. Sonia Rabello disse:

    Obrigada, Luiz Eduardo. Saudades de nossas reuniões. Abraço

  2. Luiz Eduardo Pinheiro disse:

    Sonia, você faz falta . Você tem que estar presente em todos os órgãos de proteção do patrimônio cultural.

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