Parecer da Associação Brasileira de Arquitetos paisagistas (Abap)

Eduardo Barra, presidente da Abap, Márcia Nogueira Batista, coordenadora Abap-Rio / agosto de 2006.

“Sobre a implantação do Complexo Turístico Marina da Glória no Parque do Flamengo

1. Introdução

Motivada por notícias veiculadas através da imprensa e pela constatação do ritmo de obras empreendido em pleno Parque do Flamengo, na região da Marina da Glória, em área tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pertencente a um dos mais importantes patrimônios urbano-paisagísticos da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil, a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abap) vem a público manifestar sua opinião.

2. Parque do Flamengo, Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro

O Parque do Flamengo resultou do aterro de uma larga faixa conquistada ao mar, utilizando o material proveniente do desmonte parcial do morro de Santo Antônio, trabalho iniciado no final dos anos 1950, tendo como referência o projeto de Affonso Eduardo Reidy.

O Parque está situado numa das áreas mais impactantes da cidade, tanto do ponto de vista da paisagem natural quanto cultural, constituindo uma importante transição entre a Baía de Guanabara e a malha urbana consolidada. Estende-se desde o Aeroporto Santos Dumont até o Morro da Viúva e dali até o início da Praia de Botafogo, com aproximadamente 120 hectares. Contém algumas edificações de grande significado da arquitetura modernista, como o Museu de Arte Moderna, de autoria de Affonso Eduardo Reidy; o Monumento aos Mortos da II Guerra Mundial, de Hélio Ribas Marinho e Marcos Konder Netto; o Restaurante Rio´s, de Marcos Konder Netto; e alguns pavilhões de Affonso Eduardo Reidy.

A implantação do projeto de paisagismo do parque deu-se a partir do início dos anos 1960, configurando uma das mais importantes obras de Roberto Burle Marx, considerado internacionalmente como o mais importante paisagista do século XX. Trata-se de concepção de parque urbano totalmente inovadora para a época, em que duas grandes vias expressas de ligação centro-sul foram compatibilizadas com a oferta de áreas de recreação, esportivas, culturais e de lazer contemplativo. A concepção original, mantida até hoje, não previa qualquer tipo de fechamento ou interrupção do continuum visual e funcional do parque, aberto à utilização de todos, em todos os seus ambientes e a qualquer hora do dia.

A integração do parque à paisagem natural fica evidente quando se usufrui de seus espaços internos, que permitem perceber que caminhos, jardins e massas vegetais se complementam em permanente movimento muito próximo às linhas da natureza, à exuberante paisagem natural representada pelas montanhas – o Pão de Açúcar entre elas – e a Baía de Guanabara. As perspectivas, que se descortinam de todos os seus ângulos, valorizam a percepção destes elementos da paisagem, constituindo um dos principais cartões postais de nossa cidade.

O tombamento do Parque do Flamengo ocorreu ainda na fase inicial de sua implantação, tendo sido solicitado desde 1964 com o objetivo de protegê-lo das pressões da especulação imobiliária ao qual estava sujeito, como bem dizia Carlota de Macedo Soares, uma das mais bravas defensoras de sua concretização: “Pelo seu tombamento, […] o Parque do Flamengo ficará protegido da ganância que suscita uma área de inestimável valor financeiro, e da extrema leviandade dos poderes públicos quando se tratar da complementação ou permanência de planos. Uma obra que tem como finalidade a proteção da paisagem e um serviço social para o grande público obedece a critérios ainda muito pouco compreendidos pelas administrações e pelos particulares”.

Em 28/07/1965 o Parque do Flamengo, em sua totalidade, foi inscrito no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do Iphan.

3. O projeto proposto

A Abap tomou conhecimento do projeto objeto deste parecer a partir da denúncia de cidadãos e de esparsas notícias divulgadas em alguns veículos da imprensa carioca, a partir de maio do corrente. Em seguida, levantou informações de diversas fontes e participou da apresentação realizada pelos arquitetos autores do projeto no auditório do IAB-RJ – Instituto de Arquitetos do Brasil / Departamento do Rio de Janeiro, ocorrida em 29 de junho passado. Hoje sabemos tratar-se de complexo de negócios e turismo com programa de atividades totalmente alheio aos objetivos de uma marina, cujas obras avançam sob a justificativa de urgência motivada pela proximidade dos Jogos Pan-Americanos.

Na verdade, todo este processo teve início em 1995 com a concessão da área da marina à Empresa Brasileira de Terraplanagem e Engenharia (EBTE). O projeto em processo de implantação nessa área do parque prevê a transformação de área pública em área de negócios, com centro de convenções, centro de exposições, instalações de clube privado, shopping center, garagem para 2.000 veículos e outras atividades, totalizando mais de 100 mil metros quadrados de área construída. Estabelece ainda o cercamento de toda a extensão da Enseada da Glória, fragmentando um panorama inestimável sob o pretexto de proteção aos barcos ali estacionados, em quantidade muito superior à capacidade do espaço disponível. Do outro lado da enseada, os bate-estacas cravam as fundações de garagem náutica sobre laje a ser disposta sobre o espelho d’água tombado pelo Iphan, com cerca de 16 mil metros quadrados de área, sobre a qual serão edificadas as garagens que chegam a atingir 18 metros de altura.

Além de apropriar-se de área pública, toda esta a intervenção virá danificar irreparavelmente a paisagem, atraindo volume de tráfego e de usuários incompatível com o nível de tranqüilidade que se espera em um parque público. E vale a pena ressaltar que não foram cumpridos os procedimentos naturais de aprovação de projetos desta envergadura nos órgãos competentes, de preservação do patrimônio cultural (Iphan, Inepac) e dos aspectos ambientais (Feema, Ibama).

4. Posição da ABAP

O que está em jogo é o desvirtuamento de um parque do maior interesse público com prejuízo do domínio cultural coletivo carioca de um de seus bens mais preciosos.

Segundo o Iphan, órgão federal responsável pelo tombamento do Parque do Flamengo, o órgão se encontra impedido de embargar as obras, uma vez que os concessionários da área conseguiram, em 1999, uma liminar na Justiça Federal para executá-las, com a responsabilidade de retorná-la à condição anterior caso a Justiça Federal favoreça o Parque e não o concessionário. Há uma ação popular interposta por cidadãos em 1999 e procedimentos e ações contrárias à obra tramitando no Ministério Público.

A Abap considera que construções desta ordem não só virão ferir a concepção inicial do parque, como também se contrapor à visibilidade que hoje se tem dos elementos geomorfológicos, arquitetônicos e artísticos que compõem a bacia visual da parte mais relevante da Baia de Guanabara, que inclui a praia do Flamengo e a enseada de Botafogo, com seus bens protegidos por legislação específica.

Objetivando conseguir esclarecimentos sobre o projeto em execução e a sensibilização das autoridades sobre sua inadequação ao local, a Abap encaminhou correspondência aos órgãos que mantêm ingerência sobre a área do Parque do Flamengo, assim como sobre qualquer obra que ali ocorra. De todas as cartas protocoladas, apenas o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão manifestou-se, tendo em vista tratar-se de área de domínio da União (SPU) cedida por regime de aforamento para a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Na resposta, ratifica que o uso do solo do Aterro é regulado pelo Iphan e que a cessão se torna nula em caso de utilização diversa da que lhe foi destinada (Marina).

Diante do exposto, a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas manifesta-se contrária ao empreendimento em curso, na expectativa de que as obras sejam embargadas imediatamente.”

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