Pela manutenção da área pública, aberta e não edificável

Parque do Flamengo: alvo da arbitrariedade municipal e dos interesses privados, luta contra a intervenção e a investida de construções

No fim de mês de abril de 2006, os cidadãos que frequentavam o Parque do Flamengo, na Zona Sul do Rio, puderam constatar o corte de árvores na área contígua à Marina da Glória. Desenhava-se um lamentável cenário de abusos praticados a partir de políticas públicas, com a atividade de máquinas retroescavadeiras e a desconfiguração dos caminhos, canteiros e da área de piqueniques original do parque.

A beleza local cedia espaço aos imensos tapumes e à intervenção municipal que, a partir de uma iniciativa arbitrária, se desenvolvia sobre uma área tombada – aquela anexa à Marina da Glória -, onde, de acordo com o projeto original do Parque, deveriam ser instalados um ripado para plantas ornamentais, aquário, pavilhão de flores e área de lazer, entre outros.

Amparada no pretexto da realização de obras de ampliação para os jogos Pan-Americanos, a Prefeitura e a iniciativa privada iniciaram o processo de apropriação indevida de mais de 100 mil m² de área do Parque do Flamengo junto à enseada da Glória e da Prainha. O projeto também previa a privatização da Marina da Glória por mais 30 anos. Entretanto, o objetivo final do tombamento singular do Parque do Flamengo, primava pela sua proteção diante das ações de especulação imobiliária ao qual estava sujeito.

A dobradinha Município e iniciativa privada, remando contra a maré, trazia intrínseca além da possibilidade da consolidação e ampliação do processo de privatização, também a ocupação e transformação indevida de paisagem pública tombada.

Transformações – O início deste processo data de 1995, com a concessão da área da Marina à Empresa Brasileira de Terraplanagem e Engenharia – EBTE, empreiteira que criou a subsidiária Marina da Cidade. O projeto pretendido nessa área do Parque tem a previsão de transformação de área pública em local de negócios, incluindo, desde centros de convenções e exposições, instalações de um clube privado, terminal turístico com plataforma de 200 metros sobre a Baía da Guanabara, grandes estacionamentos e garagem de veículos com mais de 41 mil m² até um shopping center.

Além de se apropriar de área pública, a intervenção poderá danificar de forma irreparável a paisagem com a construção de um volume de 200 metros de comprimento com altura correspondente a um prédio de seis andares em relação ao nível do espelho de água da Baía.

Segundo a pesquisadora do Laboratório da Paisagem do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio, Ana Rosa de Oliveira e a arquiteta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Cláudia Maria Girão Barroso, a iniciativa prevê ainda a construção de uma divisória de 2 metros de altura sobre a murada que contorna a Marina da Glória, apossando-se de um panorama inseparável sob pretexto de maior segurança para os barcos dispostos na enseada da Glória.

Liminar – A concepção original do Parque Flamengo o tinha como uma unidade de programa, partidos e intenção plástica, supondo um vínculo indissociável entre os cheios e vazios. O tombamento teve exatamente como preocupação a preservação de tal integridade urbano-paisagística. Salvo as construções previstas no projeto original, toda a área do Parque é considerada não edificável.

Apesar de caber ao Iphan o embargo das obras, em 1999, os concessionários da área obtiveram uma liminar na Justiça Federal para execução das obras, com a responsabilidade de retorná-la à condição anterior caso a Justiça Federal viesse a favorecer o parque e não o concessionário. No mesmo ano, paralelamente, houve a interposição de uma ação popular, além de procedimentos e ações contrárias à obra tramitando no Ministério Público.

O estrago provocado pela extensão do projeto proposto pode ser ainda ser maior, a partir da consideração de outros pretendidos pela esfera municipal, a exemplo da proliferação de quiosques e a expansão do Terminal de Passageiros do Santos Dumont.

Xeque-mate – No tabuleiro posto, em prol em nome de interesses escusos da Prefeitura e de terceiros, é colocado em jogo não somente o desvirtuamento de um parque de grande representatividade no que se refere ao interesse público, mas também a retirada do domínio cultural coletivo carioca de um de seus bens mais preciosos.

Os frequentadores do Parque desde então, prometeram não aceitar as mudanças de braços cruzados. Manifestações têm sido realizadas contra a obra junto ao que foi denominado “Muro da Vergonha”, na área fechada por tapumes, contígua à Marina da Glória. De forma crescente, as ações populares conseguiram agregar força na tentativa de resgate das condições asseguradas ao parque pelo tombamento.

Em março deste ano, conselheiros do Conselho Consultivo do Iphan estiveram no Parque do Flamengo para analisar as possibilidades de aceitar ou não mais uma investida de construções na área da Marina da Glória e de um anexo ao MAM. Surpresos, se depararam com integrantes do movimento “SOS Parque do Flamengo”, vigilantes, exigindo a manutenção da decisão de não edificabilidade e não privatização de qualquer área do Parque.

Em um movimento organizado e solidário, vários usuários do Parque pararam seus exercícios e questionaram quando os tapumes que cercam a área do bosque, atualmente apropriados pela gestora da Marina seriam retirados e se havia nova ameaça de construções no local. Ao serem informados dos novos projetos indagaram sobre possibilidade de se manifestarem a respeito.

O movimento garante que não dará trégua. Novas manifestações deverão ser realizadas em favor da manutenção da área pública, aberta e não edificável. Atos, aliás, justos e de relevância inegáveis para a preservação do bem comum.

A mobilização – Ana Rosa, uma das autoras de artigos que deram origem a um Fórum de Debates sobre o tema, explica, em detalhes no mesmo, toda a mobilização em prol do Parque:

“Na verdade a mobilização pró-parque do Flamengo partiu dos próprios frequentadores do parque que fotografaram os cortes de árvores pela prefeitura na ‘calada da noite’ e nos informaram e, enfim que têm estado se mobilizando constantemente e foram os que, efetivamente impediram através do seu abraço à Prainha que a mesma fosse fechada pelo que chamam de ‘muro da vergonha’, ou seja, os tapumes que delimitam a área de intervenção da prefeitura na Marina e entorno. Temos estado trabalhando com eles em suas associações de moradores da Glória, e de ‘Amigos do Catete e da Praia’. (…) essa mobilização massiva na briga por um patrimônio (…) tem sido bastante difícil. Principalmente devido à blindagem da imprensa (…). Com relação à área técnica, o desconhecimento dessa obra é quase total, daí a necessidade de nos aglutinarmos via e-mails, links, e divulgarmos essa informação em todos os âmbitos e encaminharmos mensagens pedindo apoio a órgãos governamentais, entidades internacionais de proteção do patrimônio moderno, etc. Para isso contamos com o trabalho individual de cada cidadão no sentido de divulgar e impedir que essa obra absurda possa ser efetivada”, disse.

Público e de todos – O Parque do Flamengo surgiu na década de 60, tido como uma obra grandiosa, viabilizada por grande aporte de recursos nacionais. A visão idealista  de um grupo de políticos, arquitetos, urbanistas, paisagistas, educadores, botânicos, buscou a construção de um espaço público que agregasse valores qualitativos de vida e incluísse todas as camadas sociais da população. Isso, por si só, já se confronta com os valores defendidos pelos projetos governamentais aliados à iniciativa privada, representados por uma ilha de interesses com barreiras para o público em geral.

Apesar de ser tombado por lei federal, o espaço cuja finalidade busca a proteção da paisagem e a prestação de um serviço social para o grande público parece ser pouco compreendida pelas administrações públicas e pelos interesses particulares. O clamor dos cidadãos direcionado aos seus governantes no sentido de que as cidades precisam preservar a história física de seus lugares e a continuidade, no tempo, da paisagem urbana para a vida de seus habitantes, seus hábitos e ritos sociais, ainda enfrenta desvios. E o preço do chamado “progresso” pretendido promete ser altíssimo.


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