Porto Maravilha: confusão jurídica implica riscos imobiliários e urbanísticos

O Estatuto da Cidade, – ECi – Lei federal nº 10.257/2001 previu, em seu texto, alguns instrumentos urbanísticos que visam possibilitar aos Municípios a captura de mais valias urbanas – valorizações no preço da terra – decorrentes de fatores externos às ações de seus proprietários.

Dois deles nos interessam no caso das intervenções urbanas previstas na área denominada Porto Maravilha, no Rio de Janeiro: a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), e a Operação Urbana Consorciada (OUC).

Os dois instrumentos – OODC e a OUC – são institutos jurídicos diversos, com funções diversas, e a serem usadas em operações jurídicas bastantes distintas. E, por isso, é que estão previstas em seções diversas do capítulo II, “Dos Instrumentos da Política Urbana”, do Estatuto da Cidade. A Outorga Onerosa do Direito de Construir está prevista na seção IX, nos arts.28 a 31, e a Operação Urbana Consorciada no capítulo X, art.32 a 34 da referida lei.

Ambas têm como pressuposto a aplicação da diretriz contida no art.2º, inciso IX do ECi, que visa a captura das mais valias urbanas, pela “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”, evitando assim o enriquecimento sem causa dos proprietários de terras urbanas.

Mas o fato de terem a mesma diretriz como pressuposto de aplicação não implica que esses instrumentos possam ser indiscriminadamente aplicados, um como se fosse o outro. Não. Caso isto aconteça, as consequências podem ter efeitos desastrosos, tanto do ponto de vista urbanístico, como jurídico e financeiro.

A OODC, que pressupõe índice básico e índices máximos, tem sua aplicação diretamente sobre lotes, e sua contrapartida (preço para aquisição do direito de construir) é adquirido do poder público no momento do pedido de licenciamento da edificação. Sua operação é, portanto, lote a lote. Não há, para sua aplicação, nem leilão, e nem CEPACs (Certificados de Potencial Adicional Construtivo). Há, simplesmente, uma licença onerosa de potencial de construtivo, além do índice básico, adquirido junto à Municipalidade, no momento da licença pelo interessado em construir, e no volume que deseja construir.

Já a Operação Urbana Consorciada é uma operação urbanística muitíssimo mais sofisticada, e que nada tem a ver com a Outorga Onerosa. Tendo como inspiração as ZACs (zone d´aménagement concerté) francesa, ela é uma espécie de refundição de lotes, com uma repartição de índices construtivos básicos entre todos os proprietários de terras da área, e venda dos valores adicionais entre outros adquirentes da operação. Só para elas é que é possível venda de potenciais construtivos por leilão de CEPACs.

Dependendo do tamanho da área, a Operação Urbana Consorciada pode levar anos para ser implantada. Por isto, ela deve ser aprovada por uma lei específica, não suscetível de alteração posterior; ou seja, através de um projeto de lei de iniciativa do executivo, a ser aprovado pelo legislativo: através de um decreto legislativo. Somente assim é possível garantir a estabilidade jurídica necessária a uma operação urbanística de tal vulto, pois só assim seria insusceptível de alteração por iniciativa do legislativo.

Infelizmente, talvez por pressa, talvez por inexperiência, a primeira tentativa de aplicação de Operação Urbana Consorciada no Rio, na área do Porto, embrulha em um mesmo pacote, como se fosse a mesma coisa, os instrumentos jurídicos diversos da Outorga Onerosa do Direito de Construir, e da Operação Urbana Consorciada.

Na lei que lhe dá respaldo, a Lei Complementar Municipal nº.101/2009, em seu art.36 e seguintes, diz que a os índices máximos dos lotes, a serem adquiridos pelo efeito da outorga onerosa, serão materializados e adquiridos através das CEPACs! Ou seja, a lei municipal pega um pedaço de um instrumento do Estatuto da Cidade, e mistura com outro pedaço de outro instrumento do mesmo Estatuto, põe tudo no “liquidificador” legislativo, chama de CEPACs, e lança à venda, incautamente, em leilão, em lote único, no mercado mobiliário!

Depois de vendido, o futuro único comprador, talvez um pool de fundos de pensão públicos, deterá o monopólio dos índices construtivos virtuais da área e, portanto, poderá dizer qual o preço que quer por eles.

Isto se a Câmara dos Vereadores, no seu legítimo direito político de legislar, não resolver alterar toda a legislação urbanística da área, e cortar índices de edificação aprovados, mas não realizados. Pode? Pode sim, porque o projeto foi aprovado por uma simples Lei Complementar Municipal.

Se isto acontecer, o futuro comprador, ao invés de ser um feliz monopolista do espaço aéreo municipal, terá papéis “mico” em suas mãos, uma enorme possível ação judicial contra o Município, na qual advogados debaterão por anos teses indenizatórias infindas.

Mas o Governo atual já terá resolvido o seu problema de embolsar alguns bilhões de reais, para as obras do momento…

Não é a toa que a CVM alertou, na sua aprovação, para os riscos do negócio. Quem comprar verá, ou não…

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