STF impede danos permanentes à ordem urbanística causados por leis inconstitucionais. Ainda o caso da “lei dos Puxadinhos”

Mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal (STF) é acionado para rearbitrar uma decisão de um Tribunal de Justiça estadual. Desta vez, uma reapreciação da liminar, dada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que suspendeu, cautelarmente, e por inconstitucionalidade, a aplicação de uma lei municipal da Cidade do Rio de Janeiro, a famosa “lei dos puxadinhos” (LC 219/2020).

Há dois aspectos que podem ser abordados neste caso. O primeiro seria o procedimento de ir à Presidência do STF para tentar que esta autoridade judicial reveja, monocraticamente, decisões de órgãos da Justiça Estadual. Ainda que este procedimento seja autorizado por lei, ele é considerado especialíssimo. Contudo, pela sua incidência quantitativa, contabilizando-se somente os casos propostos pelo MRJ, ele está sendo vulgarizado, o que é uma temeridade; e, em certa medida, constitui uma desconsideração e uma desconfiança à capacidade decisória dos Tribunais Estaduais. 

Já tratamos de um outro caso parecido com esse, quando o Município do Rio de Janeiro (MRJ), em julho de 2020, foi à Presidência do STF para reverter – e reverteu – decisões do TJRJ quanto ao impedimento de audiência pública virtual no caso do Autódromo do Rio de Janeiro. Mas, deixaremos para um blog futuro considerações mais aprofundadas sobre mais este caso de tentativa de socorro, via Brasília, para reverter decisões do Tribunal do ERJ.

O segundo aspecto é quanto fundamento de mérito, que justificou a decisão do STF de negar o pedido do MRJ para reverter a decisão do TJRJ, decisão esta que suspendeu a vigência da “Lei dos Puxadinhos”. Ou seja, o STF, por maioria, manteve a decisão do TJRJ, e a lei continua suspensa por inconstitucionalidade provável e dano possível à ordem urbanística e ambiental da cidade do Rio.

O fundamento da decisão do STF é que, no caso, estaria caracterizado dano inverso ao alegado pelo Município.  O Município alegou que precisava licenciar, temporariamente e mediante contrapartida financeira, construções que não se ajustavam às normas ordinárias de uso do solo da cidade para que, com este dinheiro, pudesse “salvar vidas” ameaçadas pela Covid-19. 

Desconformidade com o Plano Diretor – Porém, pelo entendimento do dano inverso compreendeu-se que as licenças “temporárias” acarretariam em construções permanentes; e estas, se autorizadas com base na lei questionada, estariam, para sempre, em desconformidade com o Plano Diretor e com os princípios de sustentabilidade ambiental e urbanística da cidade.

Antes de entrar em mais de detalhes sobre os fundamentos de mérito desta decisão, vale registrar que, quando o Município do Rio de Janeiro propôs, em 09 de dezembro de 2020, à Presidência do STF o pedido de suspender a decisão dada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do RJ, estava de plantão na Presidência, a Ministra Rosa Weber (Vice-Presidente) que negou, no mérito a pretensão do MRJ, em 27 de janeiro de 2021.

Mas o MRJ não se conformou com a decisão da Ministra Presidente em exercício, e recorreu da decisão, em 05 de fevereiro de 2021, já na nova gestão do governo municipal, que assumiu, assim, o intento do governo anterior de fazer valer a famigerada lei.

O recurso do MRJ foi então distribuído ao Ministro Fux (Presidente do STF), que em seu voto de relator, resolveu acolher o argumento do MRJ, justificando que, mesmo com uma lei eventualmente inconstitucional, a decisão do TJRJ poderia ter “potencial de causar grave lesão à saúde e à ordem administrativa econômica, na medida em que intervém em política pública destinada à arrecadação de recursos para o combate da pandemia, o que justifica a intervenção da Suprema Corte em contracautela”.

Posto o voto do Ministro Relator Fux ao Plenário Virtual, a decisão vencedora, pela maioria dos ministros do Tribunal (STF), foi a posição primeiramente externada pela Ministra Rosa Weber em sua decisão – dada no plantão judiciário – de negar a revisão da decisão do TJRJ.

Vejam que, pelo voto do Ministro Fux, caso ele estivesse no plantão do recesso forense, seria provável que o pedido do MRJ fosse acatado, gerando uma grande confusão quando à vigência da lei, já que, um mês depois, no plenário, a decisão vencedora não foi a dele, mas a tese do dano inverso!

Dano à ordem urbanística e ambiental – No mérito a decisão majoritária do STF, que manteve a suspensão da lei pode ser resumida da seguinte forma: o verdadeiro prejuízo perene ao interesse público seria o dano à ordem urbanística e ambiental da Cidade – interesses constitucionalmente protegidos.  Esses interesses não podem ser sacrificados por meio de uma lei inconstitucional, com cunho arrecadatório, alegando que o dinheiro seria destinado à Covid-19.  O prejuízo ao interesse público maior, no caso, não é dano à arrecadação temporária, conforme alegado pelo MRJ, mas um dano inverso: à ordem urbanística e ambiental.

Pena que, em função de lenta tramitação de todo este processo na Justiça, há uma grande frustração urbanística. Enquanto não se publicou o resultado das decisões judiciais, o Município do Rio de Janeiro mesmo já conhecendo, informalmente, a decisão de suspensão da lei, deferiu mais de trezentas licenças baseadas na lei inconstitucional. Alguém acredita que, no futuro, estas licenças serão revertidas, ainda que baseadas em lei inconstitucional? Será que fica ao menos a lição?

PS: Vejam trechos da decisão extraídos do voto da Ministra Rosa Weber, corroborados no voto do Ministro Alexandre de Moraes, e que serviu de base para a decisão do restante dos ministros.

“ (…) entendo que se configura no presente caso uma típica hipótese de perigo de dano inverso. A Lei Complementar 219/2020, do Município do Rio de Janeiro, permite uma série de alterações radicais no espaço urbano, cujo desfazimento se mostra extremamente difícil. (…)

Assim, embora se reconheça a importância dos valores vertidos para custear as ações de combate à Pandemia do Coronavírus, mostra-se mais sensato que todas essas agudas alterações no espaço urbano sejam consentidas somente após o deslinde da controvérsia em torno de sua constitucionalidade.  (…) . Sob o ponto de vista de seus efeitos, porém, conquanto limitado no tempo o número de possíveis beneficiários [os que estão pagando pelas regularizações], as alterações urbanísticas assim verificadas parecem dispostas à perpetuidade. Nisso está a potencialidade de contrapartida ao incremento da arrecadação momentânea: o risco de prejuízo perene ao meio ambiente e ao urbanismo. (…) No ponto, é preciso reconhecer a possibilidade de caracterização de risco inverso, ou seja, de lesão a valores constitucionais [ordem urbana, e meio ambiente], decorrentes da repristinação da eficácia da decisão suspensa” (grifos nossos)

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