Ocupe Estelita: uma sentença inovadora

Uma vitória de interesse público ! Sentença de juiz federal anula operação urbana com o codinome de “parceria público-privada” na área do Porto da cidade de Recife.

Publicada no dia 28 de novembro, sentença (ainda de 1º grau) reconhece a pertinência do direito defendido pelo Movimento “Ocupe Estelita”, e materializada pelo Ministério Público Federal em Pernambuco através de Ação Civil Pública (ACP – Processo nº : 0001291-34.2013.4.05.8300).


A proposta de uma nova ocupação urbana na área do Porto do Recife – denominada Cais Estelita, no bairro de São José – onde existem bens sujeitos à proteção federal de bens culturais da cidade, teve como personagem central a Prefeitura do Recife e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).  

À Prefeitura, com a colaboração do Governo Federal e do IPHAN, foi a quem coube a principal responsabilidade de conduzir o processo de aprovação do projeto de uma nova ocupação da área com grandes prédios, como se fora uma proposta de renovação urbana e de “modernização” da região. Não era. Configurava-se tão somente como uma forma esdrúxula de operação urbana, cujo projeto, basicamente, era viabilizar a construção de treze torres de alto gabarito.

Valor cultural – No Cais Estelita, além do valor paisagístico da área, existia o antigo Pátio Ferroviário do Forte Cinco Pontas, além de 204 imóveis federais vinculados àquele complexo ferroviário.  

Teria todo aquele complexo um valor cultural indiviso? Um grupo de trabalho técnico interdisciplinar, instituído na Superintendência do IPHAN, entendeu que sim.

Este Grupo, em “parecer destaca o valor histórico, arquitetônico, arqueológico, paisagístico, de uso e de raridade do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas; … e, em parecer complementar, o mencionado grupo de trabalho considerou o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas “lugar de memória”, “indivisível”, de modo que sua preservação deve ser feita “em sua totalidade/integralidade” e não apenas de bens isolados, razão pela qual o grupo analisou o Projeto Novo Recife e o indeferiu (Memorando n. 0976/2011/IPHAN/PE)”

Contudo, estes estudos foram contraditados na esfera da área central do IPHAN em Brasília que, na “Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário do IPHAN, mediante a Nota Técnica n. 002/2011/DEPAM, chegou à conclusão oposta, reconhecendo o valor cultural apenas dos remanescentes da antiga linha da estrada de ferro Recife – São Francisco.”

Inconformados, os Grupo de técnicos da “Superintendência do IPHAN em Pernambuco, com base no Parecer Técnico n. 01/2012/MELF/GB/MF/FC/IPHAN/PE/MinC, elaborado pelo mencionado grupo de trabalho, requereu a reconsideração da decisão proferida pela Comissão nacional, encontrando-se a matéria ainda pendente de apreciação administrativa;“. Por fim, segundo a sentença judicial, a “Presidência da autarquia, enfim, mediante o Despacho n. 61/2013-PRESI/IPHAN, em suma rejeitou o pedido de reconsideração e acatou os termos da Nota Técnica (fl. 123),” elaborada em Brasília. 

Menciona ainda a Ata da Audiência aspectos relevantes, como:

“l) a área destinada ao Projeto Novo Recife se encontra na vizinhança da Fortaleza de São Tiago das Cinco Pontas e de outros bens tombados pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN, como a Igreja de São José do Ribamar e, inclusive, parte dessa área está inserida na poligonal de proteção;

m) a poligonal de proteção dos bens tombados nos bairros de Santo Antônio e de São José deve ser revisada, pois remonta à década de 1980 e atualmente é insuficiente para a proteção dos mencionados bens, diante do novo perfil das construções que se pretendem construir no local, conforme reconhecido pelo próprio Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN em seu Plano de Ação para 2007;

n) o Projeto Novo Recife, com suas treze torres, em média de trinta andares cada uma, prejudicará a visibilidade e a ambiência do acervo tombado pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN nos bairros de Santo Antônio e de São José, o que atrai a incidência dos arts. 23, III, e 216, da Constituição da República e do art. 18 do Decreto-Lei n. 25, de 1937;

o) aplica-se ao caso concreto, ademais, o Decreto-Lei n. 3.437, de 1941, que dispõe sobre a construção de edifícios em terrenos de fortificações;”

Ou seja, existe fatos irrefutáveis de que o novo projeto de treze torres afetam a paisagem e a visibilidade de bens culturais protegidos, além do que os projetos foram aprovados sem a prévia realização do EIA/RIMA e do EIV.

Surpreende, imensamente, a postura da defesa oficial do IPHAN em juízo, que contrapõe o parecer de técnicos da Superintendência ao da direção central de Brasília, quando diz no processo judicial:

“a) no imóvel em discussão há “um monte de edificações industriais, estruturas de armazenamento e de ferragens em ruínas, desprovidas de qualquer apuro ou beleza estética” e as instalações reconhecidas como de possível interesse para a Memória Ferroviária se encontram situadas em imóvel vizinho;

b) as opiniões pessoais emitidas pelos servidores lotados na Superintendência do IPHAN no Recife/PE não foram acatadas pelas instâncias superiores da autarquia;

c) apenas um dos lotes previstos no Projeto Novo Recife (Lote 02 QE) está inserido no perímetro de proteção dos monumentos tombados no bairro de São José e, como será utilizado para fins de estacionamento, é pouco provável que implique restrição à visibilidade dos bens tombados; “.

Esse parecer, além de desprezar o opinamento de técnicos locais, fazendo-se substituir pelo órgão central que vem, não poucas vezes, sujeitar seus manifestos às conveniências do Planalto Central com a dependência de cargos de confiança, trazem uma visão antiga e ultrapassada de preservação de bens culturais, como mostra o item a e c acima!

Isso tudo, embora o Juízo afirme em sua sentença que “esta divergência, de qualquer modo, não é peculiar ao Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional – IPHAN”…

Em função de enorme análise pelo Juízo Federal, a sentença julgou procedente a postulação do Ministério Público Federal de Pernambuco para dar crédito aos estudos técnicos que estudaram e deram consistência à preservação destes bens culturais:

“(f) que seja condenado o IPHAN, nos termos do art. 9º da Lei nº 11.483/2007, a tomar ações visando a preservação e a difusão da Memória Ferroviária em relação ao Pátio das Cinco Pontas, notadamente as sugeridas no Parecer Técnico de 17/12/2010 (fls. 370, Anexo I, volume II), em especial a estipulação de diretrizes – com base em estudo ofertado por corpo técnico especializado, à semelhança do Grupo de Estudo multidisciplinar que elaborou o referido parecer – de uso e ocupação do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, devendo levar em consideração a vocação do sítio (concepção espacial de “pátio”), bem como a necessidade de preservação da visibilidade e ambiência dos monumentos tombados dos bairros de São José e Santo Antônio;

(g) que seja condenado o IPHAN a analisar e aprovar qualquer projeto – inclusive o “Novo Recife” – para edificação no referido endereço com base nas diretrizes estipuladas acima;

(h) que seja condenada a União na obrigação de se abster de dar qualquer destinação ao bem denominado Pátio Ferroviário das Cinco Pontas até que sejam definidos os usos e diretrizes pelo IPHAN, bem como na obrigação de se abster de dar qualquer destinação ao mencionado bem que seja incompatível com os usos e diretrizes que deverão ser fixados pelo IPHAN (fls. 297/298);

(i) que seja declarada a nulidade do leilão que resultou na aquisição do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas pelo Novo Recife Empreeendimentos Ltda (fls. 297/298). “

Tudo isso demonstra que o nem tudo está perdido, sobretudo quando o Judiciário Federal já transparece uma compreensão ampla e moderna da dimensão de proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro.  

A luta do grupo “Movimento Ocupa Estelita” e o Ministério Pública Federal estão de parabéns também.

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2 Resultados

  1. Parabéns aos técnicos do IPHAN pernambucano… e a mobilização popular.

  2. Infelizmente, esta discrepância de posicionamento entre os escritórios local e central do IPHAN não é incomum. Cabe lembrar do belíssimo parecer da 6ª Superintendência Regional do IPHAN no Rio de Janeiro, assinado pela Dra. Thays Zugliani em dezembro/2002, negando aprovação do “complexo Lagoon” no Estádio de Remo da Lagoa, área publica destinada ao desenvolvimento do esporte. Tudo em vão, pois os empresários do Lagoon em conluio com o secretario municipal de urbanismo da época, foram ao MinC e IPHAN em Brasilia para derrubar o parecer da 6ª SR/IPHAN e conseguiram. Nove meses depois, em setembro/2003, novo parecer é enfiado goela abaixo, a superintendente local se demite e as obras de transformação do Estádio de Remo em complexo de cinemas, shows e restaurantes iniciam-se a todo vapor. Triste fim de um patrimônio publico, de arquitetura modernista, na beira de um bem tombado.
    Por sorte, o mesmo não aconteceu com o cais Estelita. Parabéns ao Movimento Ocupe Estelita e aos técnicos do IPHAN que se mobilizaram a tempo para conseguir esta importante vitória para todos os brasileiros.

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