Vidigal: favela comprada por ricos e estrangeiros?

Este poderia ter sido também o título do programa de Fernando Gabeira, esta semana, na Globo News. Vale a pena conferir. E, em função do que ali é mostrado, reflito sobre a dicotomia do que foi pensado pelos movimentos acadêmicos e sociais sobre “regularização fundiária” das favelas, e o que, de fato, está acontecendo.

Para os movimentos sociais, a “regularização” das favelas é essencial para a defesa da segurança da posse, e para que esta viabilize a permanência daquele grupo social naquele lugar.  

E o que o programa mostra é que quanto mais se traz segurança pública e garantia de permanência, mais o capital avança para comprar o que antes, por esses mesmos motivos, estava fora do “comércio”, fora das possibilidades de investimento do capital por conta dos riscos envolvidos.

O aburguesamento – Depoimentos no programa afirmam: a população do morro está mudando, e saindo de lá rapidamente para dar lugar aos investidores e empresários jovens da classe média brasileira e estrangeiros ! Estes são os novos ocupantes de primeira geração.

Os outros, mais sofisticados, virão a seguir. Quanto mais o Estado for investindo nos serviços públicos e “regularizando”, mais a área será valorizada. E, com isto, uma veloz substituição da população?

“A tendência é isso aqui ficar mais um bairro de classe média”, cita a matéria, acrescentando que esse processo de gentrificação, com a chegada dos ricos, conduzirá ao “aburguesamento” da região.

E tudo isso era previsível…

Bastava analisar o motivo daquela população estar ali, naquele maravilhoso lugar. Tanto no caso do Vidigal, como no caso de outras comunidades, elas só puderam localizar-se nestes locais centrais porque a imperiosa necessidade de moradia fez com que seus habitantes arriscassem construir em áreas onde não poderiam obter licença de construção por serem, em sua maioria, não edificáveis pela legislação urbanística. Ou seja, em locais onde não se podia construir regularmente.

Nada nas favelas é regular, nem as edificações, nem o parcelamento, nem a infraestrutura. E nada é regularizável, salvo por leis de exceção, que se justificam pelo fato de serem “áreas de interesse social”. Ou seja, lugar de menos favorecidos! E essa irregularidade se estende pela falta de serviços básicos: ruas, iluminação pública, calçadas, praças, saneamento básico com água e esgoto, escolas, postos de saúde, entre tantos outros. Colocar tudo isso em uma favela é caríssimo ou até impossível sem uma enorme transformação do sítio.

Mas, se a área de “interesse social” é regularizada, para garantir a moradia de quem precisa, a regularização faz com que a área perca justamente a característica que obstaculizava sua entrada no mercado fundiário geral. Por consequência quase que inevitável, o mercado a absorverá em brevissimo tempo, como mostra o programa. E aí já não mais será uma área de “interesse social”: um paradoxo!

Cabe então a pergunta: a regularização se justifica, ainda assim, com normas de exceção ?

O fato é que, como é afirmado na matéria não só pelos novos investidores da classe média, mas também pelo líder comunitário do lugar, o bem (a regularização) que é trazido para a comunidade é o próprio gérmen que irá devorá-la.

Portanto, a solução da regularização não pode ser pensada pela mesma lógica jurídica que é a dominante da acumulação fundiária. Se assim for, os inocentes serão vencidos pelo capital. Alguém duvida ?

Sugiro a leitura de dois textos meus sobre o assunto, e cujos links podem se acessados neste site.

1) Regularização fundiária e o sistema jurídico – Uma introdução ao tema

2) Habitação: Direito e Governança – Duas sugestões para ação governamental

Ver também: Favela Bairro: a Brief Institutional Analysis of the Programme and its Land Aspects. In: Holding Their Ground: secure land tenure for the urban poor in developing countries. (Org.) DURAND-LASSERVE, Alain; ROYSTON, Lauren. 1ª ed. London: Earthscan Publ. Ltd., 2002, v. 1, p. 151-180

Reflexões sobre a gentrificação no Vidigal

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6 Resultados

  1. Nome*Maria Lucia Massot disse:

    Quando reclamei da implantação do Favela Bairro no Recreio, ouvi de uma promotora pública que a cidade é dinâmica, por isso não podia permanecer com um zoneamento estático. É dinâmica para várias direções, onde manda o capital.

  2. Dra. Sonia, infelizmente isso ocorre a muito tempo.
    Na década de 50, com os conjuntos dos institutos.
    Pelos idos dos anos 70, com imoveis do BNH.
    Agora com os imoveis do “minha casa minha vida”. e o “morar carioca”.
    Mesmo entregando com urbanização, creches/escolas, postos de saúde, comercio r transportes, os proprietários, vendem e se inscrevem em novos programas.
    É um saco sem fundo e ajam impostos para resolver o problema.

  3. Sonia Rabello disse:

    Obrigada pelos comentários. A matéria realmente despertou polêmica, e é por merecer reflexão mais profunda que a resposta não é una. Gostaria de pontuar dois aspectos, sem pretender responder ao que foi questionado: sou a favor da regularização sim, mas não da forma popularesca de simples decretação de interesse social e ponto. A regularização, se é para manter a população lá, e integrá-la, tem que ser através da transformação em bairro, com economias locais, e compromissos de uma lenta transformação em bairro. Assim também os bairros devem estar prontos para receber prédios de interesse social; todos os bairros devem ter de tudo. A regularização não deve servir para simples programa de transferência patrimonial. Será que isto o que está acontecendo? Se é, não devia, ao meu ver.

  4. Sonia, sempre seu admirador, estranho o tom crítico do artigo acima sobre o fenômeno social resultante da valorização imobiliária da favela, por sua vez advindo da regularização fundiária e do programa de pacificação. Lembro-me que há muitos anos você propunha justamente a regularização fundiária como a solução para os terríveis problemas das favelas. Desde então eu comprei entusiasmadamente sua proposta, naquela época inovadora e visionária… Agora que a possibilidade transforma-se em realidade alvissareira, que aconteceu? Bjs.

  5. Excelente, Sonia, muito grato. Estarei compartilhando com professores e público interessado, além de servir a meus alunos que trabalham no tema.
    Um abraço
    Rogério

  6. Eu vi no Mexico na cidade de Guanajuato uma ex favela regularizada, pintada de cores , com flores na janela, habitada em parte por trabalhadores mais pobres e por classe media. Achei muito saudavel a mistura.
    Não gosto do conceito de gueto de pobre ou escola para pobres ou vida para pobres. Condena-los a uma eterna condição social é um erro. Onde esta a famosa mobilidade. Eos empregos vindos das pousadas, restaurants e hoteis. Acho uma caretice e um dogma xiita esta segregação social. Eles não estão sendo expulsos, estão sendo integrados. E se vendem os terrenos é por que querem morar em outra cidade ou bairro com dinheiro no bolso. Não há ingenuos ou ïnocentes”. Quanto mais integrada, menos violencia. Então a ideia é mante-los como favelas pobres insalubres e inseguras para que o conceito de área de interesse social se mantenha? O estado sempre querendo regular sem discutir com a sociedade ou moradores.
    Não acredito que Sonia Rabelo e Gabeira pensem assim. Deve ser ideias de assessores que não pensam muito bem.

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