Habitação como fomento ou serviço público?

Favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio – Crédito: getyourguide.com.br

#odiadepois

O provimento de habitação para a população que não tem acesso à moradia adequada é assunto debatido nos quatro cantos do mundo. Mesmo a ONU tem um braço, a UN-Habitat, cuja função precípua é a de estimular políticas públicas que melhorem a condição de vida na cidade, facilitando, em especial, o acesso à moradia.

No Brasil, políticas habitacionais ocupam, junto com transportes públicos e saneamento básico, o centro de discussão das políticas urbanas. Sem dúvida é um problema que volta a preocupar, ao menos intelectualmente, em tempos de pandemia do Covid-19, pois se exige que as pessoas tenham condições de se manterem afastadas umas das outras, em isolamento social, e que disponham de higiene pessoal básica, podendo, no mínimo, lavar as mãos assiduamente.

Mas como exigir isso de cerca de 20% da população urbana que vive aglomerada em favelas, em condições precárias de habitabilidade das casas, sem saneamento básico, e cujo custo de colocá-lo, talvez, seja inviável?

Falar e fazer – Diz-se que o Estado deve providenciar a habitabilidade das favelas pela sua regularização (inciso XIV, art.2º do Estatuto da Cidade) *, e que o cidadão tem direito à moradia, previsto como direito fundamental no artigo 6º da Constituição Federal **. Mas como transformar este discurso legal em efetividade concreta? Como passar da satisfação de falar para a satisfação do fazer, uma vez que a existência de favelas é uma realidade centenária nas cidades brasileiras que cresce cada vez mais?

Destaco aqui o que me parece ser um ponto débil na suposta obrigação do poder público de prover acesso à moradia digna ao cidadão que não tem condições de obtê-la por seus próprios meios econômicos. O provimento da moradia no Brasil, e na maioria (senão na totalidade) dos países sul-americanos, não é tratado pela lei como um serviço público, e sim como uma atividade da economia privada.

Em direito público, quando uma atividade econômica é considerada básica para o funcionamento da sociedade, o estado a transforma, por lei, em um serviço público. E sendo um serviço público, o estado passa a ter a obrigação de prover o serviço. Assim foi com os transportes públicos que um dia foram privados, e que depois se transformaram em serviço público; o mesmo aconteceu com os serviços de cemitério, de iluminação em geral, e até com os serviços de entregas postais. São também serviços públicos o provimento da Educação e dos serviços de Saúde.

Exclusividade dos serviços públicos? – De modo geral, quando uma atividade econômica é transformada em serviço público o estado passa a ter o “monopólio” da sua prestação, devendo fazê-lo diretamente ou através de concessionários de serviços públicos. E parece-me claro que este modelo de “monopólio” estatal, em princípio, seria inservível para aplicar à atividade econômica de toda a produção habitacional.

Mas, os serviços públicos de educação e saúde oferecem um outro modelo, dentro do sistema de serviços públicos: são os serviços públicos chamados de comuns. São serviços que o Estado tem a obrigação de prestar, mas que, paralelamente, podem ter a concorrência das atividades privadas nesses campos. Assim é que o estado, através dos Municípios, tem a obrigação pela prestação de serviços públicos de educação de ensino fundamental, ao lado de escolas privadas (que não são concessionárias, mas empresas privadas autorizadas) e que oferecem ao mercado estes serviços como empresas privadas. O mesmo acontece com o sistema de saúde pública: há hospitais públicos, clínicas da família, postos de saúde e consultórios médicos privados, hospitais privados, laboratórios privados.

A provimento à moradia, embora referida como um direito do cidadão no art. 6º da Constituição Federal, e prevista como atividade de fomento governamental na competência das três esferas de governo no art. 23 da Constituição Federal, moradia não é declarada, por lei, como um serviço público e, por isso, não é de prestação obrigatória, pelo Estado, para aqueles que não a têm. Então, tal como a Cultura, o estado pode e é esperado que a estimule e a fomente. Mas, a rigor, não tem a obrigação de prestá-la, tal como a educação e a saúde.

Então, como estímulo à reflexão, vai aí a sugestão; já está mais do que na hora de pensarmos no provimento de habitação social para populações de baixa renda como um serviço público. Um serviço público de natureza comum, tal como os serviços de educação e de saúde.

É claro que isto não envolve compreender que o provimento do acesso à moradia se confunde com o acesso à propriedade imobiliária do bem.  Confundir direito à moradia como obrigação do estado de dar propriedade é uma mistura ácida que, em geral, corrói as perspectivas financeiras dos projetos públicos de moradia de médio e longo prazos, atendendo a uma parcela muito pequena da população. Mas isso já é uma outra conversa, para uma outra oportunidade!

Estatuto da Cidade: (…) Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;

Constituição Federal: (…) Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

IX – promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;  

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4 Resultados

  1. Excelente artigo Sônia Rabello e de fundamental importância sua pontuação que tudo é economia, e para as grandes empresas como os Planos de Saúde. E quero ressaltar a mercantilização da educação extremamente exacerbada e de péssima qualidade.

  2. Sonia Rabello disse:

    Querida Cláudia, muitíssimo obrigada pelos seus comentários. Você sempre precisa nas suas sugestões e ponderações. Já está passando do tempo da nossa sociedade tomar providências concretas em face desta situação intolerável para todos nós. Um grande abraço

  3. Claudia M De Cesare disse:

    Querida Sônia:
    Excelente ponderações. Inclusive, no blog da Raquel Rolnick, ela fala da urgência de alocar a população mais vulnerável em prédios abandonados. Embora a proposta seja interessante, é difícil viabilizar uma solução desta natureza em tempo hábil, pois quase a totalidade destes prédios são inacabados ou carecem de condições mínimas de habitabilidade.
    Como sociedade, precisamos questionar a razão pela qual prédios abandonados são mantidos por décadas nas nossas cidades, sem qualquer intervenção pública na grande maioria dos casos, quando temos um déficit habitacional expressivo e parcela significativa da população vivendo em condições desumanas. Tipicamente, as dívidas de IPTU acumuladas superam o valor de mercado destes imóveis. Com a simpatia do Poder Judiciário, há um arcabouço de instrumentos para transformar esses prédios em insumos para a reforma habitacional, quer seja pela execução fiscal, adjudicação do bem para o Poder Público, ou ainda a arrecadação de imóveis urbanos em situação de abandono pelo município que é prevista no Código Civil Brasileiro (art. 1.276).
    A profunda desigualdade do país é agravada, ao invés de ser minimizada pela política tributária, devido à forte regressividade do sistema tributário brasileiro. Neste triste capítulo da história mundial, ficou escancarada a importância do Estado.
    Descobriremos em breve que é inaceitável a nossa passividade em relação às precárias condições de saneamento público e habitabilidade desfrutadas por milhões de brasileiros, situação que será a provável causa do acúmulo de mortes que acompanharemos nas próximas semanas em comunidades carentes, asilos, abrigos e presídios. De forma semelhante ao coronavírus, o custo de ser desigual afeta a todos nós por seus efeitos colaterais (violência, criminalidade, propensão ao uso de drogas, mortes e pressões no sistema de saúde). O modelo de geração de receita e destinação dos gastos públicos são elementos-chave para reduzir desigualdades, criando oportunidades de preparação das camadas mais desfavorecidas para o mercado de trabalho. Após a gestão da pandemia, o governo pode assumir o protagonismo, apoiado pelo Setor Privado, na geração de empregos e promoção do desenvolvimento econômico se investir em transformar prédios abandonados em habitações para a baixa renda; universalizar o acesso à água potável, esgoto tratado, serviço de coleta de lixo; e resolver outros desafios na área sanitária. Se caminharmos nesta direção o Orçamento de Guerra (PEC 10/2020) aprovado pelo Senado ontem – cujo nome é de uma infelicidade ímpar – poderia ser substituído pelo orçamento da igualdade territorial e social. Na verdade, não precisávamos de uma pandemia para saber da necessidade destas mudanças, certo?

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