Chuvas e habitação: há lugar decente para todos nas cidades?

Bairro de Juquehy, na cidade de São Sebastião, São Paulo – Foto: Sebastião Moreira/EPA

O poder público, há anos e na maioria das cidades brasileiras, tem dado, gratuitamente, aos proprietários de terrenos vários lotes a mais do que a área de terreno efetivamente registrada no título de propriedade inscrito no Registro de Imóveis. E isso é feito ficticiamente por lei municipal, quando há um aumento do potencial de edificação no lote, para além da metragem ali registrada.

Exemplificando, um cidadão comprou um lote de 500 metros quadrados; é essa a área de terreno que está registrada como sua, no Registro Geral de Imóveis (RGI). Mas, de quando em quando, a Prefeitura, junto com a Câmara de Vereadores, resolve que aquele lote está localizado em uma área já urbanizada com transporte público, escolas, posto médico, água e esgoto, iluminação, e que a referida região deve ser adensada, ou seja, receber mais gente para morar. E aí põe na lei de planejamento urbano uma autorização para que o dono do terreno, que tinha como propriedade registrada um terreno de 500 metros quadrados, possa multiplicar esta metragem em uma área duas, três ou quatro vezes maior. Isto é feito pela conhecida verticalização do terreno, como se colocasse um terreno sobre o outro, mesmo que esta benesse de multiplicação do solo não tenha sido comprada pelo dono do terreno, e nem tenha sido objeto de registro como sua no RGI.

Então, pela lei, o proprietário do solo de 500 metros quadrados, ganha mais 500, 1000 ou 1500 metros quadrados de terreno, de forma gratuita, servindo-se da infraestrutura urbana instalada pelo poder público! Isto se chamou, no Brasil, de “solo criado”. E é fácil entender o motivo desta denominação. É que a lei urbanística cria a possibilidade de se multiplicar o terreno inicial registrado, pela verticalização; basta construir.  E mais, só pela previsão legal de se poder multiplicar o terreno tantas vezes o tamanho oficial que está registrado no RGI, o preço da propriedade também se multiplica, para benefício exclusivo do proprietário do lote. É como se comprasse um lote, e levasse quatro (!), só com a mudança da lei. Isto acontece em todo o país, em quase todas as cidades brasileiras.

Então, quando se diz que não se tem “terreno” para a construção de habitações para os cidadãos de uma cidade, isto só seria verdade se fosse verificado que, naquela determinada cidade, o poder público não estivesse multiplicando e dando gratuitamente a somente alguns privilegiados proprietários de terreno, lotes e mais lotes criados ficticiamente pela lei municipal. 

Mais uma vez exemplificando. No Rio, há cerca de um milhão e setecentas mil pessoas que moram em favelas, em áreas de ocupação sem serviços públicos básicos, em habitações precárias. No entanto, o poder público municipal (Prefeitura e Câmara) não tem nenhuma previsão, a curto e médio prazo, de cobrar pelos mais de um milhão de terrenos criados pela lei urbanística da Cidade, que seguem sendo dados, gratuitamente, tão somente para os já proprietários de lotes na cidade.

A Prefeitura e a Câmara do Rio, como de qualquer cidade brasileira, se quisessem mesmo, poderiam mudar esta realidade?

Claro que sim. Não só poderiam, como deveriam, já que a legislação federal, há mais de 20 anos, assim determinou no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 2001), em seu art. 2º, inc. IX, combinado com o art. 28 desta lei. E isto se faz com a ferramenta ali prevista chamada de Outorga Onerosa do Direito de Construir*! 

É pela Outorga Onerosa do Direito de Construir que o poder público cobra pelo “solo criado”, que ele cria pela lei. Com isto tem mais recursos públicos para ajudar a prover núcleos habitacionais decentes e seguros para parte da população que não tem tido qualquer acesso ao mercado formal comercial de habitação.

Então, quando as políticas urbanas, e o planejamento urbano de uma cidade, não cobram pelos “terrenos criados” que produz pelas normas urbanísticas, é falso afirmar que não há recursos para prover habitação razoável, com serviços públicos para todos os cidadãos. Isto porque, repito, a cidade está criando, e dando gratuitamente terrenos para quem já têm; para os que já são donos do terreno básico!

Desastres urbanos acontecem, na maioria das vezes em áreas com ocupação urbana desordenada, mais propensas às enxurradas, pois estão sem adequada drenagem, sem saneamento básico (com esgoto e lixo fluindo para os rios e ruas), sem calçadas, com projetos de ruas e vielas totalmente ocupadas por veículos e lixo, com casas precárias porque são construídas não em lotes, mas nos espaços vazios encontrados. Enquanto esta população não tem acesso a lotes urbanizados, outros recebem do poder público, gratuitamente, lotes criados pela lei! Então, a questão não é de falta de recursos, mas da forma de distribuição deles: estão indo, gratuitamente repito, somente para quem já tem.

Talvez não possamos mudar os eventos climáticos a curto prazo, mas podemos melhorar, e muito, as condições equitativas de habitação nas cidades; e isto se faz pelas políticas urbanas e pelo planejamento urbano, que estão, no momento, sendo discutidos e votados em inúmeras cidades brasileiras, nas revisões de seus Planos Diretores. Como estamos discutindo estes planos de nossas cidades?

Trocaremos as doações para os desabrigados das tragédias das chuvas de verão por mudança na cultura do planejamento urbano? Ou vamos continuar submetidos à ditadura da visão míope da política de curto prazo, do desejo insaciável dos lucros imediatos de certos “investidores” urbanos, e da sede das manchetes midiáticas passageiras das repetidas tragédias urbanas?

Não serão os políticos que irão mudar esta cultura. Cabe à sociedade civil buscar esta mudança, pela ação organizada, e pela educação. Com muita resiliência e persistência, pois a oposição é sempre dura e cega!

* Para compreender melhor sobre Outorga Onerosa, veja o vídeo 

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